Enquanto esperávamos pela aprovação dos subsídios do RECRIA e empréstimos, a casa foi ficando em pior estado. O processo começou a durar mais do que esperávamos, veio o Inverno, choveu, e o telhado cada vez mais podre. A senhora mudou de atitude: não queria obras. A Câmara realojava-a durante as obras futuras, mas segundo ela "num bairro de pretos e ciganos". Não queria. Fechou-se e não saía por nada. A última vez que entrei na casa antes disso, reparei que ela vivia entre uma das oito divisões e a cozinha. O resto tinha água a entrar como na rua. Mas ela insistia: "Não se preocupe, cai-me um bocado de tecto na cabeça, eu morro aqui e depois pode fazer as obras que quiser". Entretanto, ninguém no RECRIA ou na Câmara nos sabia o que dizer - devia haver milhares de casos semelhantes, mas nenhuma maneira de resolver este. O processo continuava a avançar, ela continuava a não querer, e a casa continuava a cair.
Como nunca mais tínhamos notícias da Câmara, arranjei um empreiteiro para entretanto ir remendar o telhado. Através da enteada da D. Juventina, conseguimos marcar um dia para ir lá. Apareço eu, o empreiteiro e a enteada. Estamos os três na rua, e a senhora nem chus nem bus. Finalmente aparece à janela. "Não entra cá ninguém, não faz obras e etc." As pombas vigiavam por cima, empoleiradas na platibanda. Durante dez minutos, tentei explicar-lhe mais uma vez que a a casa estava a cair e que era só o telhado, não tem que sair de casa, isto da rua para a janela do primeiro andar. Ela não saía de casa. Passados dez minutos, a tampa saltou: SAIA JÁ DAÍ QUE EU ESTOU A QUERER FAZER OBRAS E A SENHORA ESTÁ-ME A DEIXAR CAIR A CASA (com uma ou outra obscenidade pelo meio). Foi a festa da vizinhança. De repente, toda a gente tinha uma opinião e histórias para partilhar sobre a senhora: as vizinhas da ilha atrás, os homens da garagem, o correio, o polícia em dia de folga. A opinião geral não lhe era muito favorável.
Entretanto chegou a polícia a sério, que eu tinha chamado. Saem dois agentes, grandes, e o chefe, de nariz vermelho, ouve a explicação que eu já tinha repetido ad nauseam: a casa está a cair, ela não quer obras, ainda me morre e depois quem é responsável sou eu. Vai daí falar com ela: "Dona Juventina, é a polícia, queria falar consigo". Nada. Então o chefe abre a tampa da caixa do correio, na porta de entrada, e grita lá para dentro "Dona Juventina, é a polícia". Ouvem-se passos. À décima tentativa, comunicada através da portinhola do correio, ela abre a porta. "Esse aí é um gordo!!!!" diz, apontando para o empreiteiro que estava atrás de mim. Finalmente, os polícias falam com ela e passam-me um auto, notificação, certificado qualquer que diz que a inquilina se recusa a fazer obras e passa a estar à sua responsabilidade. Mas continua a chover.
chovia lá dentro como na rua, adeus caros estuques
1 comentário:
Fico à espera da 3ª parte....entretanto, uma vez que já fui à casa remodelada, arrepio-me só de pensar como essa senhora devia viver ali (a casa tem aí umas 10 divisões, não?)...
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